terça-feira, 15 de agosto de 2017

Quilombolas: a luta pelo direito de existir

por Vanessa Galassi O futuro de mais de 16 milhões de quilombolas, população superior à de 24 estados no Brasil mais o Distrito Federal, pode ser decidido essa semana pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 16 de agosto, os ministros julgam a validade da primeira regulamentação nacional específica para quilombos depois da Constituição Federal de 1988. O julgamento pode derrubar o decreto presidencial 4.887, de 2003, primeiro a regulamentar regras para a identificação, o reconhecimento e todo o processo de titulação das terras ocupadas por essas comunidades. Entidades de defesa dos direitos quilombolas apontam o julgamento como fruto de mais um avanço da frente ruralista. “Os poderes executivos e legislativos estão usando o judiciário para atacar a política pública de titulação dos quilombolas”, afirma Fernando Prioste, assessor jurídico da Terra de Direitos. O julgamento acontece em meio a uma série de outros questionamentos, que ocorrem também no legislativo e executivo, e que podem resultar em retrocessos nos direitos das populações tradicionais, indígenas e rurais. A discussão sobre a validade do decreto começou um ano depois de sua criação. Em 2004, o Democratas (então PFL) contou com o apoio da bancara ruralista para abrir uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3239) questionando o direito dessas comunidades à autodeclaração. Além disso, eles alegavam que apenas uma lei, e não um decreto, poderia prever os direitos dos quilombolas à demarcação. No mesmo ano da abertura desse questionamento, porém, o Brasil adotou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que estabelece que o Estado não tem o direito de negar a identidade de um povo indígena ou tribal que se reconheça como tal. A bancada ruralista ignora a convenção. “Não há problema em defender os direitos quilombolas, mas temos de defender os verdadeiros. O decreto abre essa brecha de qualquer um se declarar como descendente de escravo”, afirmou o deputado Nilson Leitão (PSDB- MT). Presidente da Frente Parlamentar pela Agropecuária, Leitão é o mesmo autor do projeto de lei que gerou forte reação ao propor estabelecer o pagamento com comida e residência, ao invés de salário, aos trabalhadores rurais. Ele também é autor do relatório da CPI da Funai e do Incra, que pediu o indiciamento de indígenas, antropólogos e procuradores, acusados pelo relator de fraudar processos de demarcação. A força da bancada ruralista de Leitão, conterrâneo do ministro da Agricultura Blairo Maggi, cresceu exponencialmente desde 2004. Na época, a bancada tinha 154 das 513 cadeiras na Câmara dos Deputados. Hoje somam 209, mais que a bancada evangélica. Por isso, são valiosos ao governo. Para conseguir os votos dos ruralistas pelo arquivamento da investigação contra o presidente Michel Temer (PMDB), o governo, em período de recessão, aliviou as dívidas rurais do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural de aproximadamente R$ 10 bilhões para R$ 2 bi e parcelou em 12 anos o débito restante, entre outras medidas. Na avaliação do advogado Diogo Cabral, que acompanha judicialmente boa parte dos conflitos das comunidades quilombolas do Maranhão, questionar a identidade étnica dos quilombolas é uma manobra para encobrir o interesse econômico. “Quando reconhecidos, os territórios quilombolas e indígenas são terras que saem do mercado, não podendo ser comercializadas. A disputa tem um caráter ideológico, mas, principalmente, econômico. E em benefício ao agronegócio.” A disputa por terras Desde 2016, seis quilombolas foram assassinados em mortes associadas à disputa por terra, sendo quatro deles lideranças. Representantes das comunidades quilombolas creditam a escalada de violência ao avanço da ação que questiona seus direitos no STF. “A gente recebe ameaça em cima de ameaça, morte em cima de morte. O Estado quer desvincular a morte dizendo que é briga de vizinho. Não é. É conflito de terra por falta de demarcação dos territórios quilombolas”, afirma Gil Quilombola, liderança do quilombo de Nazaré, no Maranhão. Existem hoje 2.523 comunidades quilombolas certificadas, segundo a Fundação Palmares, órgão do Governo Federal responsável por esse processo. Mas o número pode representar apenas a metade do total de quilombos no país. Para entrar na lista, a comunidade deve antes conseguir o reconhecimento do governo. E isso, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, depende de fatores como o acesso à burocracia pelas lideranças locais. “Muitas ainda estão sendo descobertas”, disse Denildo Rodrigues de Moraes, coordenador nacional do órgão. “São mais de 5 mil as comunidades espalhadas pelo Brasil.” Das certificadas pelo governo, apenas 11% têm a titulação das terras, o que permite pleitear a construção de escolas e postos de saúde para a comunidade, por exemplo. “O decreto de 2003 fez com que as políticas públicas chegassem até os quilombos. Por isso, para nós quilombolas, ele é uma libertação”, afirmou Moraes. De acordo com o estudo Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em Territórios Titulados, lançado em 2014 pelo governo federal, 55% dos adultos quilombolas estão em situação de insegurança alimentar no Brasil. O percentual fica em 41% quando incluídos as crianças e os adolescentes. A maioria das comunidades não tem infraestrutura de água e esgoto nem coleta de lixo. Os quilombos sem titulação vivem em constante insegurança em razão das grilagens, afirmaram todas as oito lideranças quilombolas ouvidas pela Repórter Brasil. Os “novos donos” contratam seguranças para vigiar as terras, impedindo os quilombolas de circular livremente e manter as atividades de subsistência. Também passam a cobrar uma taxa em cima da produção agrícola do quilombola ou até os despejam. Desde 1995, apenas 219 títulos foram emitidos, regularizando pouco mais de 752 mil hectares em benefício de 15.610 famílias quilombolas. Dos 1.692 processos de titulação de territórios quilombolas em andamento, 86% deles não ultrapassaram a etapa inicial, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O Incra é responsável pela regularização desde o decreto de 2003. Como se tratam de processos complexos, podem levar até 10 anos, afirma o coordenador de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra, Antônio Oliveira Santos. Uma das razões da baixa titulação são os cortes orçamentários impostos à pasta. Entre 2015 e 2016, ainda no governo de Dilma Rousseff (PT), o orçamento da pasta caiu 80%. No cargo desde o início do ano, Santos limitou-se a dizer que corte no orçamento do Incra “não é uma singularidade”. O enfraquecimento do Incra beneficia a bancada ruralista, que há 17 anos tenta emplacar a PEC 215, proposta que transfere para os congressistas a decisão final sobre a demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação no Brasil. O relator da PEC é o deputado Leitão, do PSDB. “Nesse cenário, as titulações nunca vão acontecer”, diz Prioste, assessor jurídico da Terra de Direitos. A tese do marco temporal O julgamento sobre a validade do decreto que regulamenta a questão chegou ao STF em 2012. O ministro Cezar Peluso, hoje aposentado, considerou o decreto inconstitucional. O julgamento foi suspenso por pedido de vistas. Retomado em 2015, a ministra Rosa Weber votou pela validade do decreto. Então, foi a vez do ministro Dias Toffoli pedir vistas. Por isso Toffoli será o primeiro a votar no próximo 16 de agosto. Para garantir a continuidade da titulação das terras, os quilombolas precisam de cinco dos nove votos restantes. A votação do STF pode gerar até quatro cenários, sendo três prejudiciais aos quilombolas. O tribunal pode considerar o decreto inconstitucional e manter os 166 territórios titulados de 2003 até 2017, ou pode remover todas as titulações. “Isso criaria um vácuo de regras para orientar os procedimentos para titulação. E essa ausência de regras pode paralisar de vez o andamento dos processos em curso no Incra. Temos um histórico de baixa efetividade dos direitos das comunidades quilombolas que tende a se agravar no atual governo”, disse Lúcia Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Se os ministros considerarem o decreto constitucional, podem mantê-lo na integralidade ou impor condicionantes. A ministra Rosa Weber, por exemplo, argumentou que teriam direito à terra apenas as comunidades que ali estavam em 1988, data da promulgação da Constituição. Essa tese ficou conhecida como “marco temporal” e tem sido usada para anular a decisão de terras indígenas já demarcadas. “A constitucionalidade do decreto com condicionantes é uma decisão que parece investida de direitos fundamentais, mas, na verdade, é uma interpretação conservadora e limitadora do direito”, afirmou o procurador Julio José Araujo Junior do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. A Organização das Nações Unidas, o Ministério Público Federal e outras organizações já manifestaram publicamente contra a tese do marco temporal. Isso porque ela desconsidera o passado de repressão e violência contra os quilombolas e outras grupos, como os indígenas. Esses grupos foram dizimados e retirados de suas terras, processo que obrigou comunidades inteiras a viver como nômades contra sua vontade. Em muitos casos, negando a própria identidade para escapar da perseguição e preconceito. Há ainda outro fator histórico ignorado pela tese do marco temporal. Até a década de 1980, o Estado brasileiro negava a origem dessas pessoas, de modo que não haveria como comprovar a posse das áreas nesse período. Diversos juristas e o próprio Ministério Público Federal já se manifestaram contra a tese. “É olhar pelo retrovisor, pois só reconhece as comunidades que conseguiram resistir às espoliações dos últimos séculos”, diz o procurador Araujo, do MPF. O entendimento no Brasil sobre a perseguição contra povos quilombolas, indígenas e tradicionais dialoga com a interpretação de alguns autores para perseguições que ocorreram nas grandes guerras mundiais. Ao escrever sobre a destituição de direitos do povo judeu em As Origens do Totalitarismo, que culminou com o nazismo e o assassinato de milhares de pessoas, a filósofa Hannah Arendt explica o significado da perda do direito à terra: “A primeira perda que sofreram essas pessoas privadas de direito não foi a da proteção legal, mas a perda dos seus lares, o que significava a perda de toda e estrutura social na qual haviam nascido e na qual haviam criado para si um lugar peculiar no mundo.” A perseguição que quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais sofreram no passado são ignoradas pelo lobby ruralista. “Você não pode lançar 500 processos, demarcando terra por aí, como se fosse brincadeira”, afirma Leitão, presidente da Frente Parlamentar pela Agropecuária. Para ele, a tese do marco temporal dá segurança jurídica aos “donos”. “As pessoas que compraram as propriedades há 100, 150 anos são despejadas? Há que ser feito um planejamento das áreas dessas demarcações. Não se pode brincar com o direito à propriedade.” O primeiro registro histórico que aponta o surgimento de um quilombo é de 1575, na Bahia. Transcorridos quase cinco séculos, o modo de vida nos quilombos ainda mantém muitas semelhanças. Os quilombolas vivem e sobrevivem da terra, compartilhando tudo o que ela oferece. Praticam, com manejo sustentável, a agricultura familiar, a pesca e o extrativismo. Por viverem em regiões de difícil acesso, muitos preservam costumes e tradições ancestrais, como danças, cantos e toque de tambores. Há ainda comunidades que recentemente redescobriram suas origens. “Se o marco temporal for estabelecido, essas comunidades terão mais dificuldades ao acesso à terra”, afirmou Diogo Cabral, advogado especializado na causa. Há mais de três décadas os povos quilombolas têm se organizado em movimentos sociais para defender seus direitos. Em junho, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e nove organizações da sociedade civil protocolaram uma representação junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que o Estado brasileiro seja oficialmente questionado acerca da não realização do direito constitucional quilombola à terra. Foi também realizado um pedido de audiência para o secretário da comissão, Paulo Abrão, a ser realizado em outubro. “O julgamento do decreto quilombola não é o início, muito menos o fim das lutas contra o racismo em nossa sociedade”, afirma a carta redigida pela coordenação sobre o julgamento do STF. No final de julho, em parceria com instituições da sociedade civil, eles lançaram a campanha O Brasil é Quilombola! Nenhum Quilombo a Menos!, na qual foi também elaborada uma petição online. “Temos de lutar por nossos territórios que é nosso por direito. Não dá para entregar aquilo que é seu, sua casa, sua sobrevivência, sua vida”, afirmou Reinaldo Avelar, liderança quilombola maranhense. Independentemente da decisão do STF, as comunidades prometem resistir. Fonte: Repórter Brasil

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