domingo, 23 de julho de 2023
Publicado por Boaventura de Sousa Santos
Golpe no Brasil revela revanchismo das elites – mas foi possível porque governo acomodou-se a velhos projetos e métodos. Já há condições para Outra Política
Boaventura de Sousa Santos, entrevistado por Diego León Pérez e Gabriel Delacoste, em La Diaria | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Liliana Porter
“A autocrítica tem de ser minha também. Quantas vezes jantei com Rafael Correa, presidente do Equador e ao final cantei canções do Che Guevara, como se a revolução estivesse próxima”? É 16 de abril, em Montevidéu. No meio de entrevista que concede a dois jovens pesquisadores uruguaios, sobre a crise política no Brasil, o sociólogo português Boaventura Santos encontra espaço para reminiscências pessoais. Desde o início do século, ele foi talvez o intelectual mais próximo do conjunto dos processos de mudança que mudaram os rumos da América do Sul e agora estão sob ameaça conservadora. Ligou-se tanto aos governos quanto aos movimentos transformadores. Participou da construção teórica e prática dos Fóruns Sociais Mundiais, no Brasil. Envolveu-se com as Constituintes da Bolívia e Equador. Ligou-se a processos de reflexão no Uruguai, Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai e Venezuela. Como não ouvi-lo agora?
Boaventura abre a entrevista relembrando uma crítica que ele próprio fez, inúmeras vezes, enquanto o processo sul-americano avançava. Com algumas exceções – talvez a Bolívia seja a mais notável –, as mudanças estruturais foram deixadas de lado. Optou-se pelo caminho mais fácil: aproveitar o “boom” das commodities e usar parte dos ganhos para alguma redistribuição de riquezas – tímida, porém muito relevante, porque inédita. Permitiu-se que as oligarquias mantivessem riqueza e acumulassem poder. Agora, elas dão o troco.
A partir de dado momento, porém, ele torna-se mais incisivo. Faltaram reformas estruturais, é verdade – e o Brasil é certamente o caso mais grave. Mas para uma correção de rumos não basta um “giro à esquerda”: prova disso é o escasso apoio que têm, no continente, os partidos que se julgam mais revolucionários. É preciso, também, rever as formas de política e, para tanto, compreender o papel limitado da própria teoria clássica – iluminista e eurocêntrica.
Boaventura parece fascinado com as lutas que brotam de baixo e transformam o quotidiano. Os indígenas que já não se sentem inferiores na Bolívia, Equador ou Venezuela – mas injustiçados. As meninas e meninos do Brasil, que ocupam escolas públicas ou fazem do rap e do funk formas de re-existência contra a sociedade branca que quer conformá-los a um emprego, uma família, um carro e um caixote na periferia remota. São eles que comovem o sociólogo: “Talvez agora tenhamos a chave para as epistemologias do Sul: ir mais devagar, com menos confiança de que as ideias novas criem realidades novas. Não, as realidades novas decantam de algumas ideias novas, mas não é você que cria as realidades novas, são as pessoas da rua, na luta, são eles que estão realmente inovando – e não você, com a teoria”, diz.
Sua fala transpira uma esperança preocupada. “É hora de começar de novo”, frisa Boaventura. Sabemos o que não fazer – e é algo. Para a retomada, não temos o roteiro, mas o faro. É hora de resgatar e reinventar a democracia. Ela só existirá se – como frisa Guilherme Boulos, do MTST – tiver a cara do asfalto, não a dos carpetes. Não se trata mais de dar conselhos, de participar de conferências que o poder pode tranquilamente descartar. A criação e a implementação das políticas redistributivas têm de ser assumidas pelos movimentos – e retirada, portanto, dos que pretendem domesticá-las. Quantas formas de democracia direta inventaremos? Ninguém sabe a resposta. Dependerá de nossa capacidade de inventar presentes e futuros cuja validade vá além de nossa teoria…
Venceremos? Nunca se sabe de antemão. “Quando a direita vem, vem revanchista”, lembra o sociólogo. Na Argentina, liquidaram-se em poucos meses conquistas de doze anos. No Brasil, onde está em curso um golpe, é possível que os que chegaram ao poder sem voto, e em meio à crise, lancem caça às bruxas, para brandir um bode expiatório enquanto eliminam direitos e restauram privilégios.
São os riscos do atrevimento de mudar o mundo, de inconformar-se, de pensar que nada está decidido de antemão. Alguns indagarão: valerá a pena? Melhor seria perguntar: há outra alternativa? Para refletir a respeito, fique com a primeira parte da entrevista de Boaventura. A segunda, que trata especificamente do papel das universidades, sairá em mais alguns dias. (A.M.)
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