sábado, 16 de janeiro de 2016

Poder, Estado, Democracia, Participação – Do que é que estamos falando?

Algumas notas para enquadrar esses temas e ajudar a pensar, Reginaldo Moraes, dez/2013. Vivemos em sociedades que costumam ser chamadas de “democracias liberais”, em economias “mistas”, em que há uma decisiva participação do setor público. O que isso significa? Desde sempre, ou desde muito tempo, há um conflito entre o mundo da política, da democracia, e o mundo da economia, da produção e distribuição das riquezas. O mercado é aquele lugar em que os indivíduos são desiguais – e, em alguns casos, muito desiguais. A sua participa- ção, no mercado, depende da riqueza que você tem. A participação na “democracia” tem outra regra – em princípio, seu voto vale tanto quanto o voto de um bilionário. A história dos últimos dois séculos é a história de como através do voto, da organização política e da mobilização, os trabalhadores e explorados, o lado pobre do mercado, tenta regular esse ‘mercado’ e diminuir as desigualdades. E, ao mesmo tempo, a história de como as desigualdades de riqueza se organizam para limitar a democracia, para domesticar suas leis e reduzir seus efeitos niveladores. Para os chamados “ultraliberais”, a intervenção do estado, através de leis, impostos e empresas públicas, é uma forma dos pobres avançarem na riqueza justamente conquistada pelos ricos, virtuosos, eficientes e laboriosos. Nesse tempo todo, os estados contemporâneos – o Brasil, entre eles - passaram por significativas transformações. Entre elas, vemos o surgimento de novas formas de verbalização e representação de interesses, de formulação, definição, desenho das políticas públicas. A participação foi mudando, a administração das políticas foi mudando. Outras formas de participação surgiram, além do voto nas camaras e parlamentos, nas prefeituras, governos, presidências. Mas... desaparecerá com isso a democracia representativa, a democracia dos partidos, das ideologias e dos parlamentos? O que é a democracia representativa? Como ela se relaciona com os diferentes modos de expressão popular que têm sido chamados de democracia participativa? Será que democracia participativa é o embrião de um regime político? Comecemos por esclarecer: o que caracteriza um regime político? O modo como as decisões coletivas são tomadas – como são elaboradas normas e leis, como são formuladas as políticas. Também a extensão em que as decisões são definidas como públicas e coletivas (e não privadas). Como os indivíduos se organizam e reúnem para tomar tais decisões. Regime político também quer dizer: o modo como são escolhidos os dirigentes e como são controlados e substituídos. Tudo isso somado constitui um regime político. Quando falamos no regime político estamos, de fato, falando de um personagem central das sociedades contemporâneas, o Estado. Há vários personagens nas nossas sociedades: indiví- duos, famílias, grupos sociais e profissionais e suas associações e sindicatos, organizações não Aula 2: 4 DIFUSÃO DE CONHECIMENTO em Gestão e Políticas Públicas governamentais, empresas. Mas, nenhum deles é tão importante como o Estado: o estado interfere na vida de todos os cidadãos, não apenas de alguns. Nas sociedades capitalistas modernas, o Estado é, em primeiro lugar, o instrumento de manutenção da ordem. Como a ordem capitalista é baseada na obediência do mundo proletário, isto é, no respeito à propriedade privada dos meios de produção, o Estado é, primordialmente, um instrumento de dominação. Contudo, os poderosos também precisam obter esse respeito pela via do consentimento – Napoleão uma vez disse que você pode fazer muita coisa com uma espada, menos sentar nela. O Estado precisa absorver parte das demandas vindas de baixo e exteriorizar a imagem de igualdade jurídica. A convicção da “igualdade de todos” precisa estar espalhada na sociedade, para que o Estado não tenha que dar porrada a todo momento. E, assim, todo cidadão, de algum modo, interfere na vida do Estado, nem seja apenas a cada dois ou três anos, quando vota para escolher legisladores e dirigentes. Às vezes interfere mesmo, ainda que pouco, às vezes pensa que interfere. Mas mesmo essa aparência é essencial para a sobrevivência da ordem. Há algum tempo, Max Weber produziu uma síntese que se celebrizou para caracterizar os poderes dos estados contemporâneos: dentro de um determinado território, ele detém o monopólio do uso legítimo da coerção. Podemos desenvolver essa fórmula para entendê-la melhor. Os Três Direitos Exclusivos do ESTADO ➢ Arrecadação de uma parte do excedente econômico para destiná-lo a fins públicos, coletivos Só o Estado pode tributar ➢ Produção da norma jurídica Só o Estado pode criar lei ➢ Monopólio da força, do direito de castigar Só o Estado pode exercer, legitimamente, a coerção física Quais são os instrumentos pelos quais o Estado interfere na vida social, na vida dos indivíduos, grupos sociais, empresas? • Orçamento – arrecadar, comprar, contratar • Empresas públicas – vender bens e serviços • Leis reguladoras – trabalho, comércio, meio-ambiente, etc. • Medidas monetárias e crédito • Políticas de preços • Subsídios, subvenções E os objetivos, a finalidade? Para que essa intervenção? Do ponto de vista “funcional”, o que busca o estado? Quais funções ele visa preencher? Veja o diagrama a seguir: 5 DIFUSÃO DE CONHECIMENTO em Gestão e Políticas Públicas O Estado interfere na distribuição da propriedade e da renda. Isto envolve uma disputa política, envolve decisões politicas da sociedade, sobre os padrões de distribuição da propriedade e da renda. O Estado pode promover ajustes distributivos. Por exemplo, pode transferir rendas de determinados grupos sociais para outros, através de auxílios, subvenções, programas especiais de socorro para determinadas parcelas da população. Isto é feito graças ao recolhimentos obrigatórios feitos pelo estado; taxas, impostos e cotizações sociais, como a contribuição previdenciária. Decisões do Estado influem decisivamente na distribuição da propriedade e da renda. Leis ambientais podem, por exemplo, trazer custos para determinadas empresas. E a revogação dessas leis podem baixar os custos da empresa – e jogar esses custos para a sociedade, claro. O mesmo se pode dizer de leis trabalhistas ou de controle de epidemias, qualidade de alimentos, fiscalização da segurança de locais de uso público (cinemas, hospitais, salas de espetáculos, estádios de futebol). Além disso, uma política social – como livros e merenda para estudantes – implica um gasto para a sociedade e um benefício para uma parte dela. Uma transferência de renda – em espécie. Ou um bilhete de transporte subsidiado. Os exemplos podem ser multiplicados. Mas todos eles mostram que as ações do poder público pesam nas atividades privadas – beneficiando-as ou encarecendo-as, distribuindo renda para cima ou para baixo. Daí, a disputa pelo Estado, pelos seus centros de decisão, se tornar decisiva. E como esses poderes do Estado são constituídos? Como são escolhidos os governantes, os homens e mulheres que fazem leis e que as executam? Os Circuitos do Poder e da Representação O governo representativo – na formulação liberal-democrática -- tem formas definidas para fazer leis e normas, de formular políticas públicas, ou para a verbalização e representação de interesses, para o controle das instituições públicas e de seus funcionários. Vamos chamar esse conjunto de regras e instituições de primeiro circuito da representação, aquele em que os cidadãos, eleitores, constituem os três poderes do estado: legislaturas, tribunais, executivos. 6 DIFUSÃO DE CONHECIMENTO em Gestão e Políticas Públicas REPRESENTAÇAO TERRITORIAL JUDICIÁRIO LEGISLATIVO EXECUTIVO CIDADAOS INDIVÍDUOS ATOMIZADOS PARTIDOS Preferências Interesses Vontades Há mais de um século, contudo, este quadro vem sendo complicado pela evidente e progressiva expansão das atividades do estado em principalmente, da expansão do executivo. O estado tem crescido- tanto na escala quanto em escopo – é maior no seu orçamento e no número de agentes e interfere em número maior de atividades sociais. Isto trouxe também à cena outras formas outras de de representação, expressão, influência. Surge uma espécie de segundo circuito, composto de corporações, conselhos técnicos, autarquias, organizações não- -governamentais, um variado conjunto, enfim, de figuras de direito privado ou semi-privado que recebem delegação de poder público. Elas ordenam relações sociais, produzem normas e quase-leis, atuam como tribunais administrativos, aplicando taxas, multas e sanções, assumem a execução de políticas públicas, atuando como conectadores de instituições privadas, movimentos sociais, etc. Estas instituições são vinculadas direta ou indiretamente ao Estado. E em torno delas se constituem outras formas de representação de interesses, outros canais de pressão e influência, paralelos ao voto e aos partidos. Veja o diagrama seguinte e repare nos nós que estão coloridos, eles são novos: 7 DIFUSÃO DE CONHECIMENTO em Gestão e Políticas Públicas Estas figuras novas da vida política surgiram como solução para determinados problemas: a expressão cotidiana de interesses, a representação desses interesses junto às autoridades formais “competentes” e assim por diante. Mas as “soluções” também têm seus problemas... As regras de atuação dessas organizações ou entidades não estão, em geral, previstas na constituição do Estado. Suas regras operatórias são estabelecidas “em situação”, com certa dose de invenção e acaso, derivando de práticas, usos, costumes... e dos pesos específicos que assumem em certos momentos. Elas não são propriamente uma parte do estado. Mas também não são privadas, não são como as empresas comerciais, por exemplo. Em suma, há uma porção de questões ainda polêmicas nesse campo. A seguir fazemos apenas uma lista de algumas delas, uma lista de problemas sobre os quais pensar.... Questões para Pensar Para precisar um pouco mais estas perguntas, talvez seja produtivo explorar aquilo que chamamos de segundo eixo no diagrama anterior. Algumas dessas questões podem ser assim resumidas: • Qual a relação entre as instituições clássicas da democracia representativa, como o voto, os partidos, os legislativos, e as “formas novas” de vocalização e representação de interesses, tais como: (a) os “novos movimentos sociais”; (b) as organizações não-estatais ou não-governamentais? • Quais as atividades sociais que, nesse novo quadro, ainda permanecem na esfera de competência das instituições estatais convencionais? • Quais as atividades que são transferidas para as “novas” instituições? • Como se recolocaria a questão do monopólio do estado, ou, antes, dos três monopólios básicos que têm configurado sua existência: coleta e gestão do excedente econômico que demanda gerenciamento coletivo; produção e distribuição do direito; uso legítimo da coerção? O que muda, nessas funções? • Quais os fóruns de reconhecimento e legitimação das “novas formas” de representação, etc.? Quais os critérios para definir seus “preços relativos”, ou a quantidade de “votos” que cada uma delas tem nos espaços de decisão sobre os bens públicos? Quais delas vão ter voz e voto nas decisões? E qual o critério para isso? • Essas “novas formas” de representação de interesses têm uma derivação histórica ou estruturalmente determinada. Elas foram geradas: - Pelo crescimento das atividades empreendidas pelo estado (regulação econômica, políticas sociais, investimento infra-estrutural, etc.); - Pelas deficiências e limites incapacidade, , do sistema eletivo definido com base na representação territorial (partidos, assembléias, congressos, etc.). Esse sistema parece incapaz 8 DIFUSÃO DE CONHECIMENTO em Gestão e Políticas Públicas de para gerir as novas manifestações de vontades e interesses. • As “novas formas” constituem portanto soluções para um problema. Geram contudo, elas mesmas, um outro problema. Os grupos de interesse, associações e movimentos sociais ganham um estatuto político, de agente quase estatal. Quer dizer, é como se isso significasse o reconhecimento de autoridades para-legalmente constituídas, paralelas às autoridades formalmente constituídas, reguladas pela Constituição e pelas leis. Esse reconhecimento quer dizer permissão para ingressar, opinar e votar em fóruns decisórios de políticas públicas. O reconhecimento vai se produzindo aos poucos, espontânea ou tacitamente. E aí surge um problema: quais dessas organizações são legítimas? Quais têm direito de opinião e decisão? Em quais esferas e temas? • Às vezes pode ocorrer que alguns desses organismos recebam fundos públicos ou realizem atividades delegadas pelo poder público. Então, é problemático pensá-las fora do âmbito público e fora da esfera de controle do estado. Quais as formas de regulagem, disciplinamento e controle por elas e para elas previstas? • Nem todos os indivíduos são necessariamente organizados em tais grupos, instituições e movimentos. E o que acontece com os inorganizados e os inorganizáveis, os debilmente organizáveis? Continuam fora dessa expressão de interesses e desse segundo circuito do poder. Não são questões fáceis, são complicadíssimas. Mas... para isso serve a cabeça, não é?

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